Médico cubano que ficou no Brasil após fim do Mais Médicos trabalha amparado em decisão liminar
14/08/2025
(Foto: Reprodução) yaser herrera medico cubano
Arquivo Pessoal
O médico cubano Yaser Herrera, 37 anos, atende hoje em São Paulo amparado por uma decisão judicial. Sem revalidar o diploma e sem contrato direto com o Ministério da Saúde, ele sobrevive profissionalmente graças a uma liminar obtida junto a outros colegas que também decidiram permanecer no Brasil após o fim da participação de Cuba no programa Mais Médicos.
Herrera desembarcou no Brasil em 2017, numa leva de 500 médicos enviados pela ilha em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Foi lotado em uma Unidade Básica de Saúde em São Gabriel, no Rio Grande do Sul, onde trabalhou por quase dois anos.
Assim como todos os colegas, sabia desde o início que receberia menos do que o Brasil pagava; só não sabia o tamanho dessa diferença: enquanto o contrato previa um repasse de cerca de R$ 11,5 mil mensais por profissional, ele ficava apenas com R$ 2,9 mil. O restante ia para o governo cubano.
Siga o canal do g1 Bem-Estar no WhatsApp
“Descobri o valor real do nosso salário quando uma médica brasileira que trabalhava na mesma UBS que eu, também pelo Mais Médicos, me mostrou o contracheque dela. Era a mesma função, mas ela ganhava quatro vezes mais”, relembra.
Além do salário reduzido, os cubanos também recebiam uma ajuda de custo bem abaixo da prevista oficialmente. Enquanto o governo brasileiro destinava bolsas de instalação de até R$ 25 mil para médicos que atuariam em áreas remotas, os cubanos ficavam com apenas R$ 4 mil. “O resto ficava retido. Nós agradecíamos achando que era um benefício do governo de Cuba, mas depois entendemos que eles nos roubavam”, diz Herrera.
Os atritos entre profissionais cubanos e o governo da ilha geraram diversas reclamações e ações na Justiça pelo direito de obter o salário integral. À época, o governo federal informou que, além de os médicos cubanos receberem o salário mensal em Cuba pelo fato de estarem em missão internacional, eles também recebiam uma bolsa complementar no Brasil e os auxílios moradia e alimentação das prefeituras, os mesmos benefícios que recebem os outros médicos que participam do programa.
A Opas esclarecia que os médicos cubanos eram funcionários do Ministério da Saúde de Cuba e que todos os recursos que a entidade recebe para pagar a bolsa dos médicos era totalmente enviado ao país dos médicos.
A ruptura com Bolsonaro
O vínculo entre Cuba e Brasil foi interrompido em 2018, quando o então presidente eleito Jair Bolsonaro passou a questionar a formação dos cubanos e as condições do acordo. Em resposta, Havana determinou a retirada imediata de seus médicos, sob ameaça de sanção a quem se recusasse a voltar.
“Nos deram 15 dias para sair. Vi colegas vendendo móveis às pressas e deixando pacientes sem atendimento. Não foi nossa escolha, foi uma decisão política”, conta Herrera. Temendo não ver os pais e avós por até oito anos — punição prevista para quem desertasse —, ele embarcou de volta para a ilha. Mas deixou para trás uma casa montada, certo de que voltaria.
Poucas semanas depois, conseguiu voltar ao Brasil. Sem contrato e sem revalidação —portanto, sem emprego—, passou quase dois anos atendendo em estética e limpeza de pele dentro de um salão de cabeleireiro. “Os pacientes que eu atendia na UBS iam até o salão e pediam consulta; era triste saber que eu tinha capacidade e conhecimento, que poderia ajudar, mas não estava legalmente apto”, conta.
Isso só mudou quando uma ação judicial coletiva garantiu sua reintegração temporária ao Mais Médicos. Herrera trabalhou mais dois anos, já durante o governo Bolsonaro, mas novamente o vínculo foi encerrado.
Entre liminares e promessas
Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, Herrera e outros médicos cubanos apostavam em uma recontratação direta, mas não aconteceu: precisaram, ele conta, acionar novamente a Justiça. Pagaram advogados do próprio bolso — cerca de R$ 12 mil cada — para conseguir o direito de voltar às unidades de saúde.
Hoje, o médico atua em Jandira, na Grande São Paulo, com salário integral, mas ainda sem segurança de permanência. A frustração, segundo ele, é com todos os governos brasileiros.
“Nem Bolsonaro nem Lula nos ajudaram. O que temos é porque entramos na Justiça. Pagamos caro para continuar trabalhando enquanto tentamos passar na prova do Revalida, mesmo já tendo experiência no país”, afirma.
O Revalida, exame que ratifica diplomas de medicina estrangeiros no Brasil, é apontado como uma prova de alto nível de dificuldade e baixíssimos índices de aprovação. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), de 10,8 mil inscritos em 2024 somente 737 foram aprovados.
O pano de fundo internacional
As queixas de Herrera e de outros cubanos ecoam agora em um novo cenário: o das sanções impostas pelos Estados Unidos. O governo americano acusa Cuba de explorar seus médicos ao reter a maior parte dos salários durante missões internacionais, como o Mais Médicos. A medida incluiu a revogação de vistos de autoridades brasileiras ligadas ao programa.
Enquanto o debate diplomático ganha força, médicos como Herrera seguem no meio do impasse. Trabalham amparados por liminares, tentam validar diplomas e vivem a incerteza de quando — ou se — terão estabilidade profissional no Brasil.
“Eu só queria poder exercer a medicina de forma justa, sem depender de brechas jurídicas. A gente veio para ajudar, e continua precisando provar que merece ficar”, diz.
O que foi o Mais Médicos?
O programa Mais Médicos, lançado em julho de 2013 no governo de Dilma Rousseff, tinha como objetivo suprir a carência de profissionais de saúde nas regiões mais remotas do país, especialmente em áreas ribeirinhas, no interior e nas periferias das grandes cidades .
Dentro de poucos anos, o programa chegou a ter mais de 18 mil médicos atendendo 63 milhões de brasileiros em mais de 4 mil localidades. Médicos brasileiros formados no exterior e estrangeiros passaram a ser contratados com autorização provisória, mas os cubanos foram submetidos a um regime diferenciado: eram intermediados pela OPAS, e uma grande parte dos salários (inicialmente de R$ 11,9 mil) era repassada ao governo de Cuba, que distribuía menos de 30% aos médicos.
Em 2019, após críticas do então presidente eleito Jair Bolsonaro e exigências como pagamento direto ao médico e revalidação do diploma, Cuba deu fim à parceria, retirando milhares de médicos do programa. O país abriu edital para substituir os cubanos, mas muitas posições permaneceram vagas ou demoraram a ser preenchidas.
Como é hoje?
Desde 2023, tanto o Mais Médicos como o Médicos pelo Brasil, programa criado por Bolsonaro, operam de forma paralela na rede de Atenção Primária à Saúde, com perfis, regras e formatos de contratação distintos, mas objetivos complementares de ampliar a cobertura médica no país.
O Mais Médicos, retomado no governo Lula, atua em mais de 4 mil municípios e inclui 108 vagas específicas para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). A parceria com Cuba, entretanto, não foi reformulada.
O programa aceita médicos brasileiros com registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) ou diploma revalidado no Brasil, brasileiros formados no exterior e médicos estrangeiros habilitados no exterior. Médicos sem revalidação de diploma têm permissão para trabalhar apenas em unidades básicas de saúde da rede pública e em municípios previamente indicados.
EUA revogam vistos de servidores que trabalharam no programa ‘Mais Médicos’